segunda-feira, 24 de março de 2008

Contribuições ao Processo de construção de referências

A edição 154 (nov-dez/2007) do Jornal do Psicólogo do CRPSP (disponível em http://www.crpsp.org.br/a_acerv/jornal_crp/154/set_154.htm), traz uma matéria sintetizando a produção do Grupo de trabalho "Psicólogo Judiciário nas questões de família" em que se debate as dificuldades identificadas pela categoria na relação perito - assistente técnico.

“(...) o psicólogo não pode ter vínculo ou parentesco com alguma das partes envolvidas, explicou a psicóloga Giselle Câmara Groeninga, membro do GT, durante o "II Encontro com Psicólogos, Peritos e Assistentes Técnicos". [Mais adiante, retorna-se a este tema](...)Patrícia ressalta a importância de o assistente técnico não poder ser amigo nem tampouco familiar dos envolvidos”.

Conforme consta da ata da reunião do dia 18/05/07, fez-se uma consulta ao Depto Jurídico do CRP/SP sobre o possível impedimento do Assistente Técnico.

“Pelo Código de Processo Civil, o Perito está sujeito a impedimentos, mas não o Assistente Técnico (Art. 422). No entanto, poderíamos considerar haver este impedimento do ponto de vista técnico ou ético, já que não seria adequado atuar enquanto AT de parente próximo, irmão ou amigo íntimo? Em resposta, o Depto Jurídico diz que temos o poder de normatizar, mas que o CPC permite esta prática e prevalece sobre nossa normatização. Desta forma, o caminho para resolução dessa questão parece ser o de orientação das implicações éticas quanto a esta questão, sensibilização, procurar brechas e criar jurisprudência para mudar a lei”.

O “princípio que deve nortear a relação entre o perito e o assistente técnico” é colaboração. Caberia ao perito decidir sobre aceitar ou não a presença do assistente técnico quando da realização da avaliação psicológica. Na ata do dia 18/05/07, consta que o TJ/RJ fez uma norma através da qual é colocado como possibilidade a permanência do Assistente Técnico (psicólogo e assistente social) na sala durante a realização da avaliação psicológica realizada pelo Perito.

Foucault (1999), ensina-nos que a verdade é produzida socialmente, sendo o saber técnico científico o procedimento que reconhecemos como o mais válido para a sua produção.
“Cada sociedade tem seu regime de verdade, isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”. (FOUCAULT, M. (1999) Microfísica do Poder, RJ, Graal, p.12).

A realização de perícias constitui-se num procedimento socialmente reconhecido como válido para a produção de enunciados de verdade. O parecer emitido pelo psicólogo perito no seu laudo conclusivo tem o status social de um enunciado de verdade. Estamos no âmbito das práticas sociais caracterizadas pelo exercício do saber-poder, em que o saber é suposto (e incessantemente construído) porque imprescindível para a legitimação do exercício do poder.

A função pericial aparece regulamentada no Código de Processo Civil. Na Seção II (artigos 145 a 147) é enfocada a questão do perito e na Seção VII (artigos 420 a 439) a da prova pericial.

O perito atua nos autos sob determinação judicial, o faz a serviço e a mando da Justiça. Assim, fala a partir de uma posição de imparcialidade no que diz respeito aos envolvidos no processo, respondendo por eventuais prejuízos que vier a provocar às partes (vide art. 147, acima). Pode escusar-se a realizar a perícia declarando-se impedido ou suspeito (por exemplo, alegando envolvimento pessoal com uma das partes) ou ser recusado por impedimento ou suspeição se for considerado sem condições de atuar com imparcialidade (por exemplo, por ser o psicoterapeuta da parte ou por se ter descoberto ser amigo da mesma).

O assistente técnico se distingue do perito por atuar no processo contratado e a serviço de uma das partes, é, desde a lei, parcial, visto que reconhecido como de confiança da parte (não do juízo). O lugar que ocupa é intrinsecamente parcial. Evidentemente, falar a partir de uma posição de parcialidade não deve ser confundido com autorização para violação da ética. O advogado com um mínimo de lucidez deixa de juntar aos autos os laudos de um assistente técnico que fala contra os interesses de seu cliente e, da próxima vez que precisar não será a esse que irá recorrer.

A existência do assistente técnico no proceder judiciário é expressão do princípio do contraditório e do princípio da ampla defesa.

“O princípio do contraditório significa que as partes poderão fornecer provas, testemunhas e discutir cada etapa da prova conduzida na perícia (...). Uma perícia pode ser contestada ou sua nulidade pode ser solicitada caso as partes sintam que houve algum tipo de desrespeito pelo princípio do contraditório”. (CASTRO, 2003: 35).

O processo de constituição da lide organiza os elementos constitutivos do processo numa forma que reflete a pressuposição de que há um inocente e um culpado. O proceder judiciário, ao que nos parece, só opera dentro desta pressuposição. Lembremos que tais procedimentos têm suas origens nos antigos duelos.

Ao instruir um processo o juiz instiga os envolvidos a produzir elementos que lhe possibilitem formar sua convicção. O fato de o assistente técnico ser amigo ou parente da parte que o contrata, presume-se, contamina sua intervenção independentemente de se tratar de uma perícia contábil, química ou de engenharia civil. Em se tratando de uma perícia psicológica, uma eventual amizade, parentesco ou mesmo o fato de o psicólogo ser o psicoterapeuta da parte pela qual se manifesta tecnicamente nos autos – ainda que seja admissível pela legislação civil –, destoa dos princípios norteadores de toda prática psicológica e, apenas isso, já justifica que seja desaconselhada pois, qualquer advogado que tome conhecimento de tais princípios, poderá impugná-la ao demonstrá-la anti-ética.

Tratando-se de embate entre psicólogos assistentes técnicos contratados por cada uma das partes em litígio, aquele que não mantiver qualquer tipo de relação prévia com a parte que o contrata poderá desqualificar completamente o parecer técnico de seu oponente ao demonstrar que este é parente, amigo ou psicoterapeuta da parte que o contratou e que tal ligação é destoante dos princípios norteadores da prática psicológica, mesmo que não imponha o seu impedimento.

Lembremos que há processos em que os assistentes técnicos são engenheiros, contadores, analistas de sistemas e muitos outros profissionais para os quais o vínculo com as partes não conduz, necessariamente, à uma contaminação subjetiva relevante em sua intervenção. Assim sendo, não se trata de modificar a lei, mas de definir os seus limites naquilo que diz respeito às práticas psicológicas.

Impugnável o laudo psicológico produzido por um assistente técnico em condições que destoam do preconizado pelos órgãos regulamentadores da profissão de psicólogo. Para que tal prática desapareça por completo ao longo do tempo basta que o CFP se pronuncie declarando-a explicitamente destoante dos princípios técnicos e éticos norteadores das práticas psicológicas.

A proposição de que deve haver colaboração entre o perito e o assistente técnico denota que o embate entre as partes contaminou as reflexões do grupo de trabalho sobre as relações das partes com o juízo, em outras palavras, se está confundindo a lide (o embate entre as partes) com a operacionalização do processo de coleta dos elementos necessários e suficientes para que o juiz forme sua convicção.

Ao determinar a realização de um estudo psicossocial o juiz está buscando elementos que lhe possibilitem formar sua convicção. Inexistindo impedimentos, a equipe técnica procede ao estudo submetida ao princípio de imparcialidade e se lhe deve assegurar a máxima autonomia. O princípio do contraditório autoriza às partes recusarem determinado perito alegando seu impedimento, como também contraporem-se aos resultados do estudo. Aceito o perito não se pode admitir a interferência do assistente técnico da parte na realização do estudo. Há o risco de expor-se a abalo o princípio de imparcialidade

Admitir-se a presença do assistente técnico quando da realização do estudo psicológico pericial, mesmo quando também ele é um psicólogo, implica na introdução de um elemento estranho extremamente perturbador do campo psicológico que se precisa construir para realizá-lo devidamente e, vislumbro, tende a tornar o resultado do estudo mais a expressão das negociações estabelecidas entre os profissionais do que a síntese dos aspectos psicológicos que deveriam ser avaliados pelo perito.